Resenha: 1984 em quadrinhos

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Quando pensei que 1984 não poderia ficar melhor, recebo uma adaptação aos quadrinhos de uma das histórias mais marcantes e impactantes da literatura. O resultado? Não apenas me apaixonei mais uma vez pelo trabalho profético de George Orwell, como tive o prazer de ter uma experiência de leitura indescritível ao ver 1984 encontrando um rosto. Saiba mais!

"No traço magistral do artista paulistano Fido Nesti, a obra mais poderosa de George Orwell ganha sua primeira adaptação para os quadrinhos. 1984 conta a história do angustiado Winston Smith, refém de um mundo feito de opressão absoluta. Em Oceânia, ter uma mente livre é considerado crime gravíssimo. Numa sociedade em que a mentira foi institucionalizada, Winston se rebela e, em seu anseio por verdade e liberdade, arrisca a vida ao se apaixonar por uma colega, a bela Julia, e se voltar contra o poder vigente. Publicada originalmente em 1949, a profecia de Orwell encontra seu rosto neste romance gráfico extraordinário."

FICHA TÉCNICA
Título: 1984
Autor: George Orwell e Fido Nesti
Ano: 2020
Páginas: 224
Idioma: Português
Editora: Quadrinhos na Companhia (Companhia das Letras)
Nota: 5 ♥
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Alguns livros envelhecem bem. Outros nem tanto. Alguns acabam se tornando clássicos por características pioneiras envolvendo estética, narrativa ou gênero. Outros, porém, se tornam clássicos instantâneos e, de forma assustadora, parecem se tornar cada vez mais atuais. 

No ano em que o clássico de George Orwell, 1984, cai em domínio público, sua história não poderia ser mais atual. Uma distopia que, ano após ano, brinca com os limites da ficção e dialoga cada vez mais com a realidade. Agora, em meio a tantas edições sendo impressas e comercializadas, a Companhia das Letras lança a adaptação aos quadrinhos dessa leitura quase que obrigatória. Mesclando o impacto da narrativa de Orwell e a força inigualável das histórias em quadrinhos, 1984 chega com uma roupagem poderosa e viciante. 


Para os que ainda não conhecem a história de 1984, Orwell cria um universo distópico em que um Estado absolutamente autoritário controla a sociedade por meio da figura vigilante do Grande Irmão. Por meio do uso da força, pressão psicológica, vigilância absoluta e divisão de classes, o Partido reprime seus cidadãos de forma implacável. A economia, a família, o trabalho e até mesmo o idioma são ferramentas de controle e opressão em uma sociedade nem tão distante assim da nossa.  

“Se todos aceitassem a mentira, ela tornava-se história e virava verdade. O indivíduo só precisava obter uma série interminável de vitórias sobre a própria memória.” Página 36

1984 pode parecer uma história bem destoante de A Revolução dos Bichos mas a crítica aos sistemas vigentes como socialismo e capitalismo (principalmente este primeiro) se mantém em peso e força nas páginas de Orwell. 1984 é dividido entre o decorrer da história, em quadrinhos, incluindo flashbacks e insights da mente de Winston, e algumas páginas todas em texto corrido, semelhante a um livro em prosa, que correspondem às páginas do livro da Confraria, com as ideias contrárias ao Partido e com fragmentos da “verdadeira” história. E são essas partes que ajudam não apenas o protagonista a entender o contexto no qual está inserido, mas também a situar o leitor e dar um panorama geral do universo que ele tem em mãos. 



O livro levanta o conceito de “despessoa”, que se refere a alguém que não existia e nunca havia existido. Além disso, também é muito presente a referência à “vaporização”, que seria o equivalente a assassinar o indivíduo e apagar quaisquer evidências que ele tenha existido. Ambos são formas de desumanização que reúnem alguns dos conceitos centrais da história de 1984. A transformação de pessoas em uma massa homogênea, que não tem nada de seu, nem é permitida se destacar de qualquer forma subjetiva, é algo que me remeteu muito ao uso atual das redes sociais. Ao vivermos em bolhas que nos mostram e nos colocam dentro de nichos e comunidades específicas, nos tornamos células pouco subjetivas, reproduzindo conteúdos em massa, sem profundidade e individualidade. 

Assim como em distopias como O Conto da Aia, 1984 não traz uma narrativa aos moldes da jornada do herói, que buscam trazer algum tipo de redenção e desenvolvimento individual por meio de um personagem ícone específico. Não, o livro traz um fragmento de história que se aproxima do leitor por ser uma entre tantas outras dentro de uma sociedade como um todo. Um resquício de narrativa em meio a um emaranhado de enredos. Com um dos finais mais surpreendentes e agridoces da literatura, 1984 volta, dessa vez nos quadrinhos, para nos relembrar do poder das grandes histórias e o impacto que a literatura tem ao espelhar uma realidade que não a nossa. Mas nem tão distante assim. 

“Não se estabelece uma ditadura para proteger uma revolução. Faz-se a revolução para instalar a ditadura.” Página 183



É muito difícil não ler cada página, cada texto e não refletir sobre como Orwell consegue reunir uma infinidade de perfeitas representações da realidade em um único livro, em menos de 200 páginas. É fácil esquecer a quantidade de reflexões e insights possíveis de serem feitos a partir da leitura de 1984. O livro se tornou um dos maiores da literatura por um motivo, e seu impacto é difícil de esquecer, mas os efeitos sutis e individuais de cada leitura subjetiva do livro continuam me surpreendendo anos depois da primeira vez em que pus as minhas mãos nessa obra-prima. 

“Podiam arrancar de você até o último detalhe de tudo o que você já tivesse feito, dito ou pensado: mas aquilo que estava no fundo do seu coração, misterioso até para você, isso permaneceria inexpugnável.” Página 126


A adaptação aos quadrinhos de 1984 não é uma leitura tão rápida quanto pensei que seria, mas isso não é algo negativo. Por conta da densidade do texto e a riqueza das ilustrações, é difícil não dedicar um tempinho para cada página. Ao contrário de outras HQs que me fizeram decorar o texto e prenderam meu olhar por alguns segundos em cada quadro, com 1984 me peguei relendo o mesmo quadro algumas vezes. Por isso e por conta da combinação perfeita entre texto e imagem, sinto que absorvi a história ainda mais do que quando li a versão em prosa.

Recomendo fortemente que 1984 seja lido primeiro em prosa, no clássico original, e depois na adaptação de Fido Nesti para os quadrinhos. Isso porque o texto de Orwell já é bem rico por si só e, querendo ou não, é necessário resumir e adaptar alguns elementos para os quadrinhos. E, como já havia lido 1984 anteriormente, a HQ deu uma nova vida a essa história que já tinha me marcado profundamente como leitora. Apesar de os quadrinhos serem uma belíssima porta de entrada para diversas narrativas, com 1984 sinto que seria mais um complemento, um presente e uma nova experiência de leitura do que um substituto, como alguns leitores podem acabar pensando. 

“O mais horrível dos dois minutos de ódio não era o gato de a pessoa ser obrigada a desempenhar um papel, mas de ser impossível manter-se à margem.” Página 20


1984 é uma obra-prima da literatura por si só, mas para aquele leitor que sempre sentiu um incômodo “despertencimento” e vontade de questionar sua própria realidade e seu lugar nela, é quase que uma Bíblia. É uma obra simplesmente incapaz de envelhecer porque ela reflete de forma magistral a natureza do ser humano e todas as suas sombras refletidas na vida em sociedade. George Orwell, como poucos escritores, traz um trabalho profético, cujo significado ainda reverberará por gerações. 

Mais uma vez a Companhia das Letras ganha ao adaptar, de forma original, um clássico de Orwell. Assim como em A Revolução dos Bichos, é um deleite ter um artista brasileiro ilustrando uma história com tamanha relevância e importância para a literatura como um todo. O traço de Fido Nesti ilustra a distopia de Orwell de forma impecável, conseguindo dar ainda mais vida a uma história que continua tendo muito o que contar. A adaptação foi feita de forma tão genial que elemento textual e imagético conversam de forma única, oferecendo ao leitor uma experiência de leitura indescritível. A paleta de cores escolhida, o excelente uso dos quadros e das páginas, o ritmo de leitura, a escolha do texto e a própria carga subjetiva de Fido Nesti contribuem para que 1984 em quadrinhos seja, de fato, um romance gráfico absolutamente genial.  

Gostou da resenha e quer conhecer outra adaptação incrível das histórias de George Orwell? Então confira A Revolução dos Bichos!

“Em outras palavras, é necessário que ele tenha a mentalidade adequada a um estado de guerra. Não interessa se a guerra está de fato acontecendo e, visto ser impossível uma vitória decisiva, não importa se a guerra vai bem ou mal. A única coisa necessária é que exista um estado de guerra.” Página 141


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