Resenha: Minha Sombria Vanessa

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Cinco em cada dez adolescentes e jovens mulheres já sofreram assédio sexual no Brasil e 70% das vítimas de estupro são crianças e adolescentes. O abuso infantil e a violência sexual precisam ser pautas discutidas de forma constante e os livros oferecem ferramentas importantíssimas para tal, quando esses assuntos são tratados de forma inteligente, responsável e empática. Minha Sombria Vanessa, ao abordar o abuso sofrido por uma adolescente de 15 anos pelo seu professor de 42, traz à tona a importância de falar sobre abuso infantil e a violência sexual na literatura. Saiba mais!

"Elogiado por Gillian Flynn e considerado um dos grandes livros de 2020, o romance de estreia de Russell explora as dinâmicas psicológicas de um relacionamento entre uma adolescente e seu professor.
Em 2000, Vanessa Wye é uma estudante solitária de ensino médio. Talentosa e com o sonho de ser escritora, Vanessa diz não se importar de ficar sozinha, principalmente quando seu professor de inglês, Jacob Strane, um homem de 42 anos, começa a prestar atenção nela, elogiando seu cabelo, suas roupas e lhe emprestando alguns de seus livros favoritos ― como Lolita, de Nabokov. Antes que Vanessa perceba, os dois embarcam em uma relação e a jovem acredita que o professor a ama e a considera especial.
Mais de uma década depois, uma ex-aluna acusa Strane de abuso sexual, e Vanessa começa a questionar se o que viveu foi realmente uma história de amor ou se não teria sido ela também uma vítima de estupro. Mesmo depois de tantos anos, Strane ainda é uma presença constante em sua vida. Como ela seria capaz de rejeitar o que considera seu primeiro amor?
Alternando entre presente e passado, o livro justapõe memória e trauma ao entusiasmo de uma adolescente descobrindo o poder do próprio corpo. Instigante e impossível de largar, o livro retrata com maestria a adolescência conturbada e suas consequências, para refletir acerca de liberdade, consentimento e abuso. Escrito com intimidade e intensidade assustadoras, Minha Sombria Vanessa capta brilhantemente os costumes culturais em transformação que guiam nossos relacionamentos e a própria sociedade."


FICHA TÉCNICA
Título
: Minha Sombria Vanessa
Autora: Kate Elizabeth Russell
Páginas: 432
Ano: 2020
Editora: Intrínseca
Nota: 4
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LIVRO CEDIDO EM PARCERIA COM A EDITORA




Minha Sombria Vanessa é um relato intenso, angustiante e real sobre uma história de assédio e abuso que poderia, facilmente, acontecer a qualquer uma de nós. Mesmo sendo uma história fictícia, a veracidade dos acontecimentos cria uma infeliz identificação com uma enorme parcela do público que precisa lidar, diariamente, com as consequências da normalização do assédio e da violência sexual.

Para escrever Minha Sombria Vanessa, Kate Elizabeth Russell se baseou em manchetes - infelizmente - muito comuns nos noticiários, além de fazer uso da teoria do trauma crítico, da cultura pop, do pós-feminismo do início do século XXI, e dos próprios sentimentos conflitantes da autora em relação a Lolita.


Minha Sombria Vanessa, por meio da estrutura narrativa escolhida pela autora, mostra toas as consequências e desdobramentos que um abuso como esse pode causar na vida de uma mulher. O trauma cria raízes tão profundas que a vítima tem dificuldade em diferenciar o que é consequência do trauma e o que de fato é parte de quem ela é. Ao longo da narrativa a própria Vanessa questiona seu passado, dizendo que não se lembra de quem ela é sem Strane, que ela mesma sequer sabe quem é fora das descrições e manipulações do professor. O livro mostra como, mesmo tendo existido um suposto consentimento, suposto porque nesse caso o consentimento não é necessário já que é uma relação de pedofilia, mesmo que ela tinha verbalizado o “sim”, temos acesso ao que se passava na cabeça dela e como ela praticamente gritava “não” e é possível entender mais profundamente a superficialidade do argumento do consentimento em casos de abuso infantil e violência sexual.

“É fácil identificar quando tudo começou, o instante em que entrei na sua sala de aula muito iluminada e senti seus olhos me sorverem pela primeira vez, porém é mais difícil saber quando terminou, se é que algum dia chegou a terminar.” Página 16


Minha Sombria Vanessa também levanta alguns detalhes em diálogos, pensamentos e expressões que acabam sendo naturalizaras no cotidiano, mas que mostram como temos a tendência de culpabilizar a vítima antes mesmo que algo tenha acontecido a ela. Isso é apontado pela próxima Vanessa ao sentir que ela era um risco por atrair a atenção dos homens.

É triste perceber essa culpabilização vindo da própria vítima, que se sente responsável não apenas pelo que aconteceu a ela, mas pelo que pode vir a acontecer com outras depois. Além disso, a maneira com a qual Vanessa consegue sobreviver e lidar com os traumas, pode acabar sendo interpretada de forma errônea. Ela precisa acreditar que viveu uma história de amor, porque se ela se permitir perceber a verdade da história que definiu sua vida, seu passado e seu presente, pode acabar desmoronando. E Minha Sombria Vanessa, ao mostrar isso dessa forma, acolhe diversas vítimas que, além de terem sido profundamente marcadas por acontecimentos semelhantes, são ainda mais massacradas por terceiros que não entendem o suficiente os mecanismos usados por elas para sobreviver ao trauma.


Minha Sombria Vanessa mostra como esses predadores sabem escolher suas vítimas. Não porque elas são mais fracas que as outras pessoas, como a própria Vanessa às vezes é levada a acreditar, mas porque algumas condições podem deixá-las mais vulneráveis. No caso de Vanessa, ela morava sozinha na universidade, tinha brigado com sua melhor amiga, tinha certa dificuldade para acompanhar o ritmo das aulas e matérias por ter vindo de uma escola menos exigente, sentia as coisas com mais intensidade e isso se refletia na sua escrita, e era uma menina mais introvertida, com problemas de confiança, mais insegura e solitária. Enquanto ela precisava de uma figura que a ajudasse a redescobrir o potencial em si mesma de forma saudável, Strane consegue distorcer todos esses elementos de forma a colocá-la como uma vítima perfeita e ele faz questão de exaltar tudo o que pode fazer com que ela se afaste cada vez mais de qualquer possível rede de apoio. Com isso, ele cria uma fortíssima dependência emocional e psicológica que prende a jovem Vanessa a ele e ao seu bel-prazer.

Strane romantiza essa “escuridão” de Vanessa, como se fosse algo misterioso e digno de ser exaltado. E ele a obriga a se tornar cada vez mais reclusa, mais calada, mais introvertida para potencializar sentimentos e comportamentos se submissão e vergonha, de inferioridade. Fazer com que ela sinta que é incompreendida, que é intensa demais, que só ele a entende faz com que ela seja moldada da forma que ele achar mais conveniente e faz com que ela fique cada vez mais dependente dele. O “apelido” dado a ela, “Minha Sombria Vanessa”, é o auge e a representação perfeita da imagem que ele quer que ela tenha de si mesma em prol de fazer com que ela se isole cada vez mais de qualquer pessoa que possa apontar que a situação é errada.

“Imagino que eu vou ser a pessoa a quem ele vai recorrer daqui a fez ou quinze anos, na hora em que seu corpo começar a falhar. Este parece o fim provável dessa história de amor: eu largando tudo e fazendo qualquer coisa, tão dedicada quanto um cão, enquanto ele recebe, recebe, recebe.” Página 16


É angustiante observar como Strane consegue manipular Vanessa de tal forma que ela realmente busca sua aprovação a todo custo, mesmo quando ela mesma percebe que não se sente atraída por ele e que, em diversos momentos, sente repulsa. Fica claro que essa “relação” não tem nada de sexual, não da parte da vítima e que, portanto, não poderia ser consensual, é uma relação pautada no poder e no controle psicológico. E cada vez que ela tem um vislumbre da verdade e questiona o que lhe foi e é feito, ele se autodeprecia para conseguir que ela sinta pena dele e culpa de si mesma, para que ela se veja como uma pessoa má que infringe dor naquele que supostamente a ama. Strane é um predador inteligente, bem articulado e que sabe muito bem como criticar a si mesmo na esperança de conquistar empatia.

Os traumas de Vanessa são tão profundos que ela projeta no presente todos os rostos que fizeram parte de seu passado. Ela recria constantemente momentos vividos anteriormente e, mesmo que eles aconteçam com anos de diferente e sejam protagonizados por pessoas diferentes, ela sempre enxerga os rostos de velhos conhecidos, como se esses fantasmas fossem para sempre assombrá-la e fazer com que ela acredite que as situações deveriam e vão acontecer da maneira que ela lembra. E, ao mesmo tempo, Vanessa acaba tentando ela mesma recriar situações com outras pessoas, sem saber se é algo que ela realmente quer ou se ela apenas sente conforto e segurança, mesmo que doentias, porque isso é tudo o que ela conhece e está acostumada.

A autora traz à tona a questão do conceito e do entendimento do que seria um estupro e acredito que isso seja vital não apenas para fazer com que as pessoas questionem certezas supérfluas a respeito da questão, mas também para ajudar vítimas a entenderem que o que aconteceu com elas, mesmo que elas acreditem que queriam, não pode ser considerado consensual e cabe, à pessoa mais velha e experiente, ter discernimento e responsabilidade para impedir que qualquer coisa aconteça.


Vanessa se recusa a se colocar num papel de “vítima” e, por mais que isso seja verdade e algumas pessoas ao redor dela fiquem com raiva por ela ter esse posicionamento, consegui entender claramente que foi a forma que ela encontrou de sobreviver. É uma das únicas maneiras pelas quais ela consegue ter algum controle de verdade, na forma que ela mesma escolhe contar sua história. Pensando nisso, o livro também mostra o erro das pessoas ao redor de Vanessa que não souberam lidar com a situação, indo desde as pessoas com a mesma idade que ela, que talvez não agiram da melhor maneira por inexperiência e inocência, até as mais velhas que supostamente deveriam protegê-la e acolhê-la.

Não é um livro escrito apenas para pessoas que já conseguem perceber muito claramente a diferença entre amor e abuso. Minha Sombria Vanessa é um livro para servir de espelho para vítimas que poderão se identificar com a narrativa de Vanessa e enxergar nas páginas do livro, sua própria história, descobrindo junto da protagonista algumas verdades encobertas pelo passado.


Livros como Minha Sombria Vanessa não são fáceis de digerir, mas são importantíssimos para criar um processo de identificação em vítimas que não reconhecem que o que elas sofreram foi um abuso, mostrar as consequências de um trauma como esse na vida de uma mulher, ir na contramão de diversos produtos literários que romantizam histórias e relações de poder como essa, mostrar a importância de se existir uma rede de apoio livre de julgamentos para pessoas que passaram por algo parecido. Que possamos usar a literatura como ferramenta de luta e conscientização!

Deixo aqui a recomendação para conhecer a história de Coragem, uma narrativa real sobre a indústria do entretenimento e a cultura do estupro.

“Ainda me sinto diferente dos outros, Sombria e profundamente má, tanto quanto me sentia aos quinze anos, mas tentei compreender melhor os motivos. Tornei-me especialista no tema diferença de idade e consumo livros, filmes, qualquer coisa na qual haja um romance entre um adulto e uma criança na definição jurídica do termo. Vivo numa procura eterna por mim mesma,  mas nunca encontro algo exato.” Página 317


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